quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Dois contos


Uma figura folclórica

Seu Zé era uma figura folclórica da minha infância. Ele morava na rua das casas, número na porta, como dizia. Ele era ranzinza e irreverente. Sempre falava, principiando qualquer conversa: “o negócio é o seguinte: dezenove não é vinte, mas tem um porém: noventa não é cem.” Ele conversava muito e quando alguém lhe fazia alguma pergunta que não sabia responder, dizia: “acredito que sim, creio que não, porém não sei”, encerrando o assunto. Do seu neto, ele dizia: “sapeca? Aquele já pintou o sete, riscou o oito, desenhou o nove e apagou o dez.” Se o menino, suado, pulava em seu colo ele logo dizia: “vá tomar banho que você tá com cheiro de cachorro novo.” Ao filho, aconselhou no dia do casamento: “todo dia quando chegar em casa, dê uma surra na mulher.” Diante da surpresa do seu filho, ele lhe esclareceu: “você poderá não saber porque está batendo, mas ela saberá porque está apanhando.” Ainda lhe disse mais: “a mulher tem dois direitos: o 1º é saber que não tem direitos nenhum e o 2º é não abusar dos direitos que tem.”  Mas nada  disso era de verdade, ele não era mau, era apenas um gozador. Ele disse que, na mocidade, esteve se formando em engenharia até que o seu patrão  vendeu o engenho. Sobre um vizinho que, depois de sofrer um acidente automobilístico, passou a ter uma perna mais curta que a outra, ele saiu com essa: “quando Deus aleija é pra não perder de vista.” Todo final de tarde ele ia na bodega do seu Manoel, tomar um cafezinho, fumar um charuto ou cigarro de palha e jogar conversa fora. Pra irritar seu Joaquim, um senhor preto e seu quase desafeto, assim ele pedia café todos os dias: “ me dê um preto, passado no saco.” No dia em que o café não estava “no ponto”, ele comentava: ”tá com gosto de cuscuz de cinza.” Quando ele chegava na rodinha dos aposentados, sempre gracejava: “Soldado, sem farda, sem companhia, chegando da putaria, se apresentando pra trabalhar.” E quando ele terminava de contar uma fofoca, completava: “é o mundo todo pra falar de mim e eu sozinho pra falar do mundo todo.” Quando ele se despedia de nós, mais jovens, sempre dizia: “quando for dormir, feche os olhos. Quando acordar, abra!” A sua ausência casual era logo sentida por todos. Realmente era uma grande figura o seu Zé.

Alberto Magalhães

O cabrito roubado

Naquele aprisco só havia um cabrito e uma ladra o roubou. Ela não era uma ladra comum e aquele não era um cabrito qualquer. Ele havia gerado uns cabritinhos e neles depositava os seus cuidados. Os conduzia aos campos e aos alimentos que lhes sustentavam com saúde. Também lhes oferecia carinho e atenção. Ele era o guardião daquele aprisco. Com ele por perto tudo parecia menos inóspito e inseguro. Ali também havia uma cabrita que o auxiliava e compartilhava de tudo que o cabrito fazia. No dia em que a ladra chegou ela não chegou com estardalhaço. Nem com agressividade ou coação. Não! Ela chegou de mansinho, com um sorriso no rosto e braços abertos para abrigar qualquer desprevenido. E aquele cabrito se maravilhou de que houvesse mais um abraço para o abrigar nas suas fantasias. E logo se acostumou com aquele novo abraço que trazia um perfume suave e sedutor. Aquela ladra não roubava pertences ela roubava apenas corações, mas com tudo o que havia nele. Um dia ele a seguiu, não se sabe ainda pra onde, e não mais voltou.
Agora, sem ele, aquele lugar não parecia mais um aconchegante aprisco, um lar, mas apenas, um simples abrigo. Todos os dias a cabrita se fazia várias perguntas. Por onde andaria, agora, aquele cabrito sonhador? O que estaria fazendo? Estaria feliz? O seu coração estaria sentindo falta daqueles campos verdosos e pacíficos e dos que lhe amavam? Se importaria ele em saber como estariam aqueles que ele havia deixado? Estaria abrigado do frio e da chuva, como aqui estivera, cercado de cuidados? Como estaria aquele cabrito que fora daquele aprisco, um dia? 

Alberto Magalhães

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