quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Um pedido no natal

22 de dezembro de 2011

Eu sou natural de Bagdá, onde há poucos instantes ouvi um estrondo de uma bomba que explodiu próximo da minha casa e soube que muitas pessoas morreram e membros foram separados dos seus corpos. Eu não fui ver, ainda sou criança e tenho medo.

Repentinamente eu fui transportado em pensamento para a periferia do Rio de janeiro onde uma adolescente foi atingida por uma bala perdida e depois para Moçambique onde havia os corpos de crianças mortas pela fome, deitadas na poeira da estrada por causa da guerrilha perversa, causada pela ambição insana de poder. Vi nos Estados Unidos uma mãe jogar um bebê no fosso porque estava desempregada. E fui girando e vendo pelo mundo cenas de terror.

Na minha casa não comemoramos festas natalinas, não reverenciamos Jesus nem esperamos o papai Noel vir do céu para nos trazer algum presente. Nada disso me ensinaram, eu vi na internet.

No entanto, nesse momento eu pensei nessas coisas. E orei a Alá: Senhor eu gostaria que nos mandasse um papai Noel. Um mensageiro celeste. Alguém que trouxesse no saco uns ensinamentos com uma ordem no final: “cumpram, para o bem de todos.”

Que dissesse que o amor, a fraternidade, a solidariedade, a compreensão, a compaixão eram elementos essenciais para que, depois de considerado aprovado, o cidadão recebesse um documento (mesmo aos cinqüenta anos) intitulado “adulto”, apto ao emprego, ao casamento, ao mandato eletivo, a herdar a herança deixada por seus pais...

Que dissesse que o título de adulto fosse anulado a partir do dia que o cidadão voltasse ao estado anterior. Anulando automaticamente todos os direitos concedidos.

Que garantisse à criança realizar sonhos como crescer saudável física e psicologicamente. Ver os pais só “dormirem no seio da terra”, bem velhinhos, quando seus netos tiverem crescidos em seus colos. Deixar as crianças, antes de extinguir o seu tempo por aqui, plantar muitas árvores, ler muitos livros, casar com a(o) namorada(o) da sua infância, viajar para vários lugares e saborear outras culturas, poder viver sem medo e sem conviver com a violência. Que cada um pudesse escolher uma profissão desejada, para ser útil a todos e assim também ter tudo o que precisa.

Que a paz seja o sonho de todos, o bem maior, porque ele preserva todas as vidas.

Ligo o computador e peço isso diretamente a Alá pelo Google. Lá encontro uma resposta ao meu pedido: Deus já enviou à terra esse papai Noel. Deram-lhe o nome de Jesus.

Alberto Magalhães

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O desejo realizado

As pessoas almejam obter ótimos empregos, altos cargos, polpudos salários, empreender grandes negócios, possuir todos os bens de consumo disponíveis no mercado, imóveis bonitos e confortáveis, querem estar muito belas, com seus corpos em forma, rijos, “sarados”, cabelos e pele viçosos, brilhantes ansiosas por agradar ao mundo e serem agraciadas por ele. Querem ser bem sucedidas em tudo o que o seu coração deseja. Mas mesmo as pessoas que conseguem isso nem sempre conseguem conhecer o sentimento de realização plena, de felicidade alcançada. Como se o espaço interior da realização pessoal fosse um vazio incomensurável. Temos o exemplo da atriz americana Marilyn Monroe, que apesar de linda, famosa, rica, desejada e admirada no mundo não se sentia feliz e teve um final deprimente. Elvis Presley, Michael Jackson, Amy Winehouse, entre tantos que não conseguiram encontrar felicidade na realização pessoal física, financeira, social, profissional. Parecia que quanto mais realizavam seus desejos mais definhavam na frustração de superar a sua condição de pessoa vulnerável, frágil, fisiologicamente comum.

Pareciam demonstrar que quando prosperavam e ocupavam todos os espaços que podiam ficavam limitados, tolhidos, deficientes, engessados na sua própria condição humana que não lhes permitia subir além, transcender, ser nada mais do que já eram. E havia tantos artistas, tantas beldades, tantos talentos em cada área em que eles se destacavam. Embora a soma dos seus talentos e qualidades não os fizessem sentir-se realmente especiais e plenamente realizados. Precisavam agora galgar um nível de excelência que outra pessoa ao seu redor não tivesse alcançado.

A realização de um desejo é a sua morte, ou seja: quando realizamos um desejo o matamos e então fica essa sede interminável de realizar outros desejos e vamos desprezando o que já realizamos, anulando-o como valor elementar ou pondo-o em segundo plano e abandonando ou negligenciando a nossa responsabilidade com o que foi conquistado, às vezes arduamente, preterindo pessoas que nos são caras e subestimando afetos que nos prendem à estrutura basilar da nossa alma. Lembro-me daquela frase tão comum na minha infância, e tão sem validade atualmente, gravada na traseira dos caminhões: “Não tenho tudo o que amo, mas amo tudo o que tenho.” Epicuro disse que a dor nasce do desejo. Certamente haverá algo ou alguém sublime que preencha esse espaço faminto do homem, esse vazio que parece imenso. Cada desejo a se realizar – com suas consequências -, é um convite para o caminhar fecundo e uma porta aberta para a descoberta do abismo interior.

Alberto Magalhães

domingo, 28 de agosto de 2011

O essencial num estalo

Porque gostas de me ouvir falar em casos fabulosos, em histórias passadas nas ruas e vielas de tempo revolto e de valentia nascida do medo de sucumbir frente ao adversário, sempre a me solicitar a repetição de cenas cruas e pujantes nunca pude discorrer sobre coisas mais relevantes ou simplesmente mais tenras e humanas – não heroicas, dividir percepções fecundas, teorias conflitantes, indecisões emblemáticas, experiências edificantes e superações.

Por isso eu preciso escrever, só assim eu sobrevivo à sombra da razão e me eternizo nessas linhas que ficam para a posteridade, testemunhas da vontade de superar o artificial. Porque alguém disse que é necessário escrever para reinventar o mundo ou até mesmo escrever como se nada mais restasse no mundo a não encher a alma de poesia. Para exorcizar a nossa mediocridade e assim, quem sabe num estalo, desfazer os conceitos hipócritas, preconceitos concebidos, dogmas estabelecidos e os sofismas delirantes. Talvez curar essa falsa lucidez mesquinha e emocionalmente danosa que impede o ser real emergir das profundezas do seu egocentrismo e conseguir encontrar as mais belas qualidades no fundo da sua alma, junto com os defeitos que o acompanham.

Talvez não seja tão difícil conseguir se escrevermos numa folha colada na porta da saída de casa, para lermos todos os dias: Na vida temos o mundo a descobrir, a amizade para distribuir, a alegria para sorrir, a felicidade para conquistar...

Alberto Magalhães

domingo, 12 de junho de 2011

Por quem os sinos dobram

Prossigamos despidos de todas as amarras que nos prendem aos nossos ensinamentos rudimentares e paradigmas “engessados”. Façamos como Ernest Hemingway no seu livro “Por quem os sinos dobram”, sabendo discernir entre todos os lados. Entre o bem, o mal e o neutro (para mim, em última análise, o neutro é o mal ao avesso – mas não se importem muito eu passei a ser um inveterado questionador. Os tolos chamam a tais, “rebeldes sem causa”- e os tolos porventura entendem de causas?).

Façamos o seguinte: hoje, questione sinceramente as suas convicções com as outras opiniões e ao final com os fundamentos práticos e subjetivos dos nossos ascendentes (tão menosprezados por essa geração de pessoas superficiais, vazias e limitadas) e sempre defenda, com firmeza, seus pontos de vista que sejam coerentes com seus princípios reformulados por você.

No âmbito geral o que hoje é (na aparência) talvez não o seja de verdade. O que ontem foi (algo de ruim ou de bom), talvez agora não seja mais. Pensem, questionem esse mundo indutor, busquemos agora as razões primeiras – não aquelas nos transmitidas nos redutos que nos cercam por pessoas maquiavélicas e pequenas , desprovidas de um mínimo de espiritualização positiva – nuvens sem água, que o vento da verdade em pouco tempo deteriora.

Alberto Magalhães

(POR QUEM OS SINOS DOBRAM - Acima de tudo o livro trata da condição humana. O título é referência a um poema, e invoca o absurdo da guerra, como a guerra civil, travada entre cidadãos de um mesmo país. "Quando morre um homem, morremos todos, pois somos parte da humanidade”/ Fonte: wikipedia). Alberto Magalhães

sábado, 14 de maio de 2011

Um alguém

Para me fazer rir sempre. Para dormir enroscada comigo. Para dizer que se sente segura ao meu lado. Para ser capaz de andar comigo no teleférico, mesmo tendo medo de altura. Para, de vez em quando, bisbilhotar o meu celular, bolsos e pasta. Para dizer: “se eu te pegar com outra, eu te deixo”. Para fazer os meus gostos nas horas certas. Para fazer eu me sentir a pessoa mais importante do seu mundo, mesmo que este seja modesto. Para se despedir com um: “cuidado!...” e me receber de volta com um simples e carinhoso abraço. Que tenha o prazer de me esperar para almoçar comigo, quando a fome não for enorme. Que eu seja o seu único e exclusivo amor, mesmo não tendo sido o primeiro. Que se aflija no dia em que eu tiver forte febre e seja a minha enfermeira. Que no dia em que, por algum motivo, se decepcione comigo seja capaz de apenas dizer: "a partir de hoje eu não vou mais amar você". E, se depois eu trocar tudo pelo seu amor, ouvir: “eu vou dar a nós dois uma chance”. Que esconda as minhas falhas da minha – e da sua - família. Que goste dos que eu gosto e despreze os que eu não gosto. Que me deixe enxugar a sua lágrima que eu fiz cair. Que, carinhosamente, atribua a mim os pequenos defeitos do nosso filho. Que, só comigo e com os que me amam, ria das minhas gafes. Alguém que seja capaz de me dizer as verdades que eu preciso ouvir, sem me fazer sentir-me um caso perdido. Que, silenciosamente, espere receber tudo isso de volta.

Alberto Magalhães

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Tragédia em Realengo

Talvez não seja muito difícil fazer uma leitura do evento ocorrido na escola Tasso da Silveira, em Realengo, no Rio de Janeiro. Essa é uma tentativa de se adentrar nos meandros da mente do assassino Wellington e descobrir as suas razões, mesmo que equivocadas. Ninguém faria um ato bárbaro desses se não tivesse movido por fundamentos incontestáveis, sólidos na sua mente delirante. Para iniciar devemos observar que mais eventos como aquele não acontecem no mundo apenas por falta de oportunidade para o pretenso executor promover o atentado como, por exemplo, a impossibilidade do pretendente juntar os seus “algozes” no mesmo lugar, ou tê-los juntos no mesmo tempo e espaço, como aconteceu nas escolas que sofreram esses ataques, mundo a fora. Certamente Wellington se achou no direito de “punir” os seus “inimigos” que o haviam tratado com desnecessária insensibilidade, desprezo e desrespeito por anos. Atos socialmente impunes. Ele não considerava o seu projeto o de um louco ou de um monstro, mas de um “justiceiro”. Quem lê a bíblia e torna-se um fundamentalista, como ele muito bem demonstra, prega que Deus pune os “ímpios” com a morte e alguns se acham no direito de auxiliá-lo nessa tarefa, como se fossem um anjo da morte. O seu antecipado pedido de perdão ao Divino, em carta, não foi exatamente por causa das mortes que iria causar, mas da sua própria vida que iria deliberadamente encerrar naquele ato. De alguma forma esse tipo de pessoa considera-se “superior” aos seus desafetos, acha-se espiritualmente “iluminado”, por considerar-se incompreendido, injustiçado, perseguido e, portanto, especialmente acolhido pelo Ente divino. Na sua caminhada à escola Tasso da Silveira ele pode ter se sentido um herói, um justiceiro dos fracos, oprimidos e humilhados, dos incompreendidos, rejeitados, diferentes.  A preferência dele em executar as meninas pode ter se dado porque elas “podiam” e “deviam” ter-lhe sido solidárias e favoráveis, por serem mulheres, portanto sempre mais sensíveis e compreensivas. Ele certamente considerava-se um cidadão honrado, virtuoso, digno... E a cultura atualmente assimilada pela juventude feminina é a da sensualidade pura, da qualidade física e a de recepcionar, preferencialmente, o descolado, o transgressor, o despojado de valores éticos e morais e que interage com todos os segmentos pragmáticos. Tudo o que ele não era. E só elas, ao menos uma, poderia lhe ter reabilitado frente a eles. Se alguém teve a vontade para isso não teve coragem suficiente de se indispor contra a horda adversa. A sua solidão teria se tornado interiormente devastadora. No seu gesto extremo ele tentava sair da insignificância que lhe submeteram para a notoriedade dramática, correspondente ao seu dilema: ser mais um anônimo humilhado e preterido ou ganhar relevante projeção exatamente por meio daqueles que o jogaram para o fundo do poço? Ele era muito desajustado e a sua tentativa de sublimação veio num ato que não era só de ascensão, mas um misto de superação, vingança, justiça, catarse. O seu encontro com a libertação desse peso angustiante seria o encontro com a morte. Talvez, se pudesse, a de todos.
Alberto Magalhães

domingo, 27 de março de 2011

Libelo do ato ímpio

Recentemente eu escrevi um texto denominado “Carta a um amigo”, o qual está postado neste blog. Pois bem, isso não foi por acaso, como por acaso – dizem – nada acontece. Um colega de trabalho naquele momento pensava em tirar a própria vida por questões financeiras e outro por questões amorosas. Tudo transcorria dentro deles numa dimensão superior ao real – mas não pra eles. Para eles tudo teria chegado ao ponto final, nada mais estava importando por aqui. Mas as pessoas ao seu lado não se apercebiam da gravidade, para eles, dos seus dramas pessoais. Até que conversaram comigo. É interessante como tem pessoas que pensam que eu, geralmente, vivo como se estivesse no limite da perspectiva vivencial. Provavelmente eu demonstro isso sem me aperceber. Talvez em virtude disso eu seja receptor de tantos segredos que guardo a sete chaves. Pois bem, conversei com eles sobre experiências pessoais e outros fatos interessantes que contemplei na minha breve caminhada nesse mundo enganador. E, em síntese, de tudo o que conversei, relatei nesse curto texto – Carta a um amigo – a mensagem que servia de epílogo ao objetivo  pretendido. E como eu não tenho como ter acesso – embora gostaria –, pelo menos, aos dilemas cruciais das pessoas que estimo e que estão passando por uma grave crise existencial eu resolvi escrever – das minhas paixões, a maior – sobre parte do que eu disse aos pretendentes ao suicídio:

Eu lutei no útero por uma oportunidade de sobreviver, mesmo que fosse com outro(s). Cheguei só. Sobrevivi à formação do embrião, do feto, ao parto, à frustração de sair de um mundo aconchegante e só meu para a luz desse conturbado mundo. Retirado do casulo para ser entregue nas mãos de estranhos que me puxariam para outra realidade que não escolhi e onde seria apenas mais um. Sobrevivi a impiedosa asma nos primeiros anos, ao sarampo, rubéola, catapora, a uma queda de uma árvore de dez metros de altura aos oito anos, a um afogamento aos treze, e – já adulto - a três acidentes automobilísticos graves e sobrevivi a muitas outras situações que levaram outros a óbito.

Não tenho, no entanto, nenhum apego à vida já que ela, na verdade, não me pertence visto que dela não tenho o domínio, mas apenas a posse provisória. Mas também não posso renunciar a ela. Esta primeira vida é uma missão, na qual plantamos algumas ilusões e colhemos dores. Eu, naturalmente, desafio a morte a cada dia que vivo, desde o início da gestação. O corpo é apenas a morada efêmera de um espírito intocável pelas almas sebosas. Mas ai daquele que um dia desencarnar um espírito injustamente, mesmo que seja o seu. Esse ser que se põe como juiz do destino do próximo – ou de si - não é um instrumento do Criador, mas um ser que lhe é adversário. Se eliminar o outro desse plano, injustamente, é um ato ímpio o que não será eliminar a si próprio? Não há justiça nesse propósito. Nele não há fé, não há amor, não há esperança, não há virtude, não há proveito, não há honra.

Alberto Magalhães

domingo, 20 de março de 2011

Deus

De repente tudo parece ser ilusão, fantasia. Família, amigos, amor, ódio, honra, dever de ofício, sonhos, ideais, corpo, vida, morte. Tudo o que de profundo se relaciona com os tais passa a aparentar ser fantasia da mente e se desfará como a neblina ao amanhecer. Deus, esse ser tão magnífico e, por vezes, distante, inalcançável, é a verdade que nunca se apaga e uma chama que não se extingue dentro de mim, a me revelar cruamente para mim mesmo. Ultimamente mata-me aos poucos, sem me destruir. Confunde-me nos meus caminhos, me transtorna sem me enlouquecer. Consome-me sem me aniquilar. Revolve-me completamente, sem me tocar um dedo. Porque na minha omissão eu não mais aborreço os ímpios. Ainda assim Ele me ampara e me protege das forças ocultas. Embora me subverta contra mim mesmo, é quem dá sentido aos meus dias e me faz rir dos poderosos. Por vezes transborda-me de profunda dor ou imenso prazer...       

Alberto Magalhães
  
                                                     

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

O corpo e as sombras

Uma sombra estava bem próxima, ao meu redor. Discreta, sutil, quase imperceptível. Ela não me apaziguava, nem me transtornava. A não ser em momentos de convulsão emocional. Nesse momento me sublevava. Ela não me guiava, mas sempre me acompanhava por mais que eu não quisesse e a desprezasse. 

Na paz, na espiritualidade ela sumia. Na vida mundana ela sempre aparecia. Ela não procurava me aniquilar, mas me subverter, manipular e dominar o que afinal é a mesma coisa. Eu a ingeria alma a dentro na cerveja gelada, na fumaça morna, no sexo profano, na futilidade mental, na mágoa adormecida, na maldade perpetrada.

As sombras se conhecem  e se comunicam, mas não conhecem os humildes de espírito. Não os incomoda. Antes, são por eles anuladas. Essas sombras estão por ai a gozar privilégios e espaços cada vez maiores no mundo materialista, individualista, egoísta, egocêntrico.

Sombras que minam o amor verdadeiro, construtor, redentor, pacifista. As sombras riem dos homens, das suas vulnerabilidades, das suas aspirações, das suas tragédias, das suas dores e da sua infelicidade. E nos enchemos de sombras atraentes, ofuscando o sol primitivo dos nossos corações.

Alberto Magalhães

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Dois contos


Uma figura folclórica

Seu Zé era uma figura folclórica da minha infância. Ele morava na rua das casas, número na porta, como dizia. Ele era ranzinza e irreverente. Sempre falava, principiando qualquer conversa: “o negócio é o seguinte: dezenove não é vinte, mas tem um porém: noventa não é cem.” Ele conversava muito e quando alguém lhe fazia alguma pergunta que não sabia responder, dizia: “acredito que sim, creio que não, porém não sei”, encerrando o assunto. Do seu neto, ele dizia: “sapeca? Aquele já pintou o sete, riscou o oito, desenhou o nove e apagou o dez.” Se o menino, suado, pulava em seu colo ele logo dizia: “vá tomar banho que você tá com cheiro de cachorro novo.” Ao filho, aconselhou no dia do casamento: “todo dia quando chegar em casa, dê uma surra na mulher.” Diante da surpresa do seu filho, ele lhe esclareceu: “você poderá não saber porque está batendo, mas ela saberá porque está apanhando.” Ainda lhe disse mais: “a mulher tem dois direitos: o 1º é saber que não tem direitos nenhum e o 2º é não abusar dos direitos que tem.”  Mas nada  disso era de verdade, ele não era mau, era apenas um gozador. Ele disse que, na mocidade, esteve se formando em engenharia até que o seu patrão  vendeu o engenho. Sobre um vizinho que, depois de sofrer um acidente automobilístico, passou a ter uma perna mais curta que a outra, ele saiu com essa: “quando Deus aleija é pra não perder de vista.” Todo final de tarde ele ia na bodega do seu Manoel, tomar um cafezinho, fumar um charuto ou cigarro de palha e jogar conversa fora. Pra irritar seu Joaquim, um senhor preto e seu quase desafeto, assim ele pedia café todos os dias: “ me dê um preto, passado no saco.” No dia em que o café não estava “no ponto”, ele comentava: ”tá com gosto de cuscuz de cinza.” Quando ele chegava na rodinha dos aposentados, sempre gracejava: “Soldado, sem farda, sem companhia, chegando da putaria, se apresentando pra trabalhar.” E quando ele terminava de contar uma fofoca, completava: “é o mundo todo pra falar de mim e eu sozinho pra falar do mundo todo.” Quando ele se despedia de nós, mais jovens, sempre dizia: “quando for dormir, feche os olhos. Quando acordar, abra!” A sua ausência casual era logo sentida por todos. Realmente era uma grande figura o seu Zé.

Alberto Magalhães

O cabrito roubado

Naquele aprisco só havia um cabrito e uma ladra o roubou. Ela não era uma ladra comum e aquele não era um cabrito qualquer. Ele havia gerado uns cabritinhos e neles depositava os seus cuidados. Os conduzia aos campos e aos alimentos que lhes sustentavam com saúde. Também lhes oferecia carinho e atenção. Ele era o guardião daquele aprisco. Com ele por perto tudo parecia menos inóspito e inseguro. Ali também havia uma cabrita que o auxiliava e compartilhava de tudo que o cabrito fazia. No dia em que a ladra chegou ela não chegou com estardalhaço. Nem com agressividade ou coação. Não! Ela chegou de mansinho, com um sorriso no rosto e braços abertos para abrigar qualquer desprevenido. E aquele cabrito se maravilhou de que houvesse mais um abraço para o abrigar nas suas fantasias. E logo se acostumou com aquele novo abraço que trazia um perfume suave e sedutor. Aquela ladra não roubava pertences ela roubava apenas corações, mas com tudo o que havia nele. Um dia ele a seguiu, não se sabe ainda pra onde, e não mais voltou.
Agora, sem ele, aquele lugar não parecia mais um aconchegante aprisco, um lar, mas apenas, um simples abrigo. Todos os dias a cabrita se fazia várias perguntas. Por onde andaria, agora, aquele cabrito sonhador? O que estaria fazendo? Estaria feliz? O seu coração estaria sentindo falta daqueles campos verdosos e pacíficos e dos que lhe amavam? Se importaria ele em saber como estariam aqueles que ele havia deixado? Estaria abrigado do frio e da chuva, como aqui estivera, cercado de cuidados? Como estaria aquele cabrito que fora daquele aprisco, um dia? 

Alberto Magalhães